A importância da avaliação neuropsicológica em pacientes com suspeita de TDAH antes do início do tratamento psiquiátrico

Resumo

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por sintomas persistentes de desatenção, hiperatividade e impulsividade. O diagnóstico clínico do TDAH, embora essencial, frequentemente se beneficia de uma abordagem multidimensional, na qual a avaliação neuropsicológica desempenha papel central. Este artigo discute a importância da avaliação neuropsicológica antes do início do tratamento psiquiátrico, destacando sua contribuição para o diagnóstico diferencial, identificação de comorbidades, compreensão do perfil cognitivo e delineamento de estratégias terapêuticas mais eficazes.

Introdução

O TDAH é um dos transtornos mais comuns em crianças e adolescentes, podendo persistir na idade adulta e impactar negativamente diversas áreas da vida, como o desempenho acadêmico, a vida profissional e os relacionamentos interpessoais (American Psychiatric Association, 2022). Apesar de seu reconhecimento clínico relativamente disseminado, o diagnóstico do TDAH ainda é desafiador, sobretudo pela sobreposição de sintomas com outros quadros psiquiátricos e pelas variações individuais de funcionamento. Nessa perspectiva, a avaliação neuropsicológica se configura como uma ferramenta essencial para embasar o diagnóstico clínico e orientar a tomada de decisões terapêuticas, especialmente antes do início do tratamento farmacológico.

O papel da avaliação neuropsicológica no TDAH

A avaliação neuropsicológica é um processo sistemático que investiga o funcionamento cognitivo, emocional e comportamental do paciente, por meio de testes padronizados e de uma escuta clínica qualificada. Em casos de suspeita de TDAH, essa avaliação permite uma análise detalhada das funções executivas, da atenção sustentada e seletiva, da memória de trabalho e da regulação emocional — domínios frequentemente comprometidos nesse transtorno (Barkley, 2015).

1. Diagnóstico diferencial

Diversas condições clínicas e ambientais podem mimetizar sintomas de TDAH, como transtornos de ansiedade, depressão, dificuldades de aprendizagem, privação de sono e exposição a estressores familiares. A avaliação neuropsicológica ajuda a distinguir o TDAH de outros transtornos com apresentações sintomáticas semelhantes, evitando o risco de falsos positivos e tratamentos desnecessários ou ineficazes.

2. Identificação de comorbidades

Estudos indicam que até 70% dos pacientes com TDAH apresentam comorbidades psiquiátricas, como Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD), Transtornos de Aprendizagem, Transtorno de Conduta, Transtornos de Humor e de Ansiedade (Pliszka, 2007). A avaliação neuropsicológica permite mapear essas comorbidades de forma precoce, possibilitando uma intervenção terapêutica mais completa e personalizada.

3. Mapeamento do perfil cognitivo

Cada indivíduo com TDAH apresenta um padrão singular de funcionamento. A identificação dos pontos fortes e fracos do paciente é essencial para o planejamento de intervenções psicoeducacionais, psicoterápicas e farmacológicas mais efetivas. Além disso, o perfil cognitivo permite orientar professores, familiares e terapeutas sobre estratégias de manejo e suporte adequadas.

4. Estabelecimento de linha de base

Ao realizar uma avaliação antes do início do tratamento psiquiátrico, cria-se uma linha de base objetiva do funcionamento do paciente. Isso é crucial para monitorar a evolução dos sintomas e avaliar a eficácia da medicação ou de outras intervenções ao longo do tempo, contribuindo para ajustes terapêuticos mais precisos e baseados em evidências.

Considerações clínicas e éticas

O início direto do tratamento psiquiátrico, especialmente com o uso de psicoestimulantes, sem uma avaliação neuropsicológica prévia pode levar a diagnósticos apressados, medicalização indevida e desconsideração de fatores ambientais, afetivos e pedagógicos. Além disso, a avaliação fortalece a aliança terapêutica com o paciente e seus familiares, promovendo uma compreensão mais profunda das dificuldades enfrentadas e das possibilidades de desenvolvimento.

Conclusão

A avaliação neuropsicológica é um componente fundamental na abordagem clínica de pacientes com suspeita de TDAH. Sua realização prévia ao início do tratamento psiquiátrico contribui para um diagnóstico mais preciso, evita intervenções inadequadas, identifica comorbidades relevantes e delineia um plano terapêutico mais eficaz. Em um contexto de crescente medicalização da infância e da vida adulta, apostar em um diagnóstico cuidadoso e multidimensional é não apenas uma escolha clínica responsável, mas também uma postura ética diante da complexidade subjetiva de cada indivíduo.

Estudo de Caso 1

Identificação

Paciente masculino, 11 anos, encaminhado por neurologista com suspeita de TDAH. Estudante do 6º ano do Ensino Fundamental. Queixas escolares persistentes desde os primeiros anos escolares, caracterizadas por dificuldade de concentração, inquietude motora e desorganização nas tarefas. Sem histórico de uso de medicação psicotrópica. Pais relatam impaciência, explosões emocionais e esquecimento frequente de objetos.

Motivo da avaliação neuropsicológica

A equipe médica solicitou avaliação neuropsicológica para confirmação diagnóstica, caracterização do perfil cognitivo e auxílio na decisão sobre início de tratamento medicamentoso.

Procedimentos

A avaliação foi realizada em quatro sessões, com entrevista clínica (pais e criança), aplicação de instrumentos padronizados e observação comportamental. Entre os instrumentos utilizados:

  1. Escalas comportamentais (ASRS, SNAP-IV)
  2. Testes de atenção e funções executivas (TAVIS-4, Teste dos Cinco Dígitos)
  3. Testes de memória e linguagem (WISC-V, subtestes)
  4. Prova de leitura e escrita
  5. Entrevista semiestruturada com os pais

Resultados

  1. Atenção: Déficit em atenção sustentada e seletiva. Queda significativa no desempenho em tarefas de tempo contínuo (TAVIS), com elevado número de omissões e comissões.
  2. Funções executivas: Déficits importantes em inibição, planejamento e memória de trabalho. No Teste dos Cinco Dígitos, o paciente apresentou lentidão no controle inibitório e dificuldade em alternar entre estímulos.
  3. Memória: Memória de curto prazo e memória de trabalho auditiva prejudicadas. Memória visual preservada.
  4. Linguagem e aprendizado: Inteligência geral dentro da média (QI total = 97), mas com discrepância entre índices, sendo a memória operacional e velocidade de processamento os domínios mais comprometidos. Dificuldades em leitura e organização de ideias escritas, compatíveis com transtorno específico de aprendizagem.
  5. Aspectos emocionais e comportamentais: Escalas preenchidas pelos pais apontaram altos escores em desatenção, impulsividade e desregulação emocional. Queixas de baixa autoestima, frustração frequente e problemas de relacionamento com colegas.

Discussão

O perfil do paciente é compatível com diagnóstico de TDAH subtipo combinado, com presença significativa de sintomas de desatenção e impulsividade, além de um possível transtorno específico de aprendizagem da leitura e escrita. A avaliação revelou um padrão de funcionamento neuropsicológico que não seria suficientemente identificado por meio de entrevistas clínicas ou escalas isoladas.

A análise das funções executivas e da memória de trabalho foi fundamental para compreender as dificuldades relatadas em ambiente escolar e familiar. Além disso, o mapeamento detalhado permitiu sugerir adaptações pedagógicas específicas, como fragmentação de tarefas, uso de recursos visuais e intervalos programados.

Encaminhamentos e recomendações

  1. Encaminhamento para acompanhamento psicopedagógico e fonoaudiológico.
  2. Indicação de psicoterapia cognitivo-comportamental para manejo da impulsividade e autoestima.
  3. Encaminhamento para retorno com neurologista/psiquiatra com base nos dados da avaliação para discussão sobre o início de tratamento farmacológico com psicoestimulantes.
  4. Orientação parental com foco em estratégias de manejo comportamental e reforço positivo.

Conclusão

Este caso ilustra como a avaliação neuropsicológica contribui de forma decisiva para o diagnóstico diferencial e para o planejamento terapêutico em casos de suspeita de TDAH. Além de evitar a medicalização precoce ou inadequada, permite uma abordagem clínica mais abrangente, que considera as singularidades do funcionamento cognitivo e emocional do paciente.

Estudo de Caso 2

Identificação

Paciente do sexo feminino, 32 anos, solteira, ensino superior completo, empregada como analista administrativa em uma empresa privada. Encaminhada por psiquiatra para avaliação neuropsicológica com suspeita de TDAH. Nunca recebeu diagnóstico formal, mas relata desde a infância sintomas persistentes de distração, impulsividade e desorganização.

Motivo da avaliação

A paciente procurou auxílio clínico após crescente comprometimento em seu desempenho profissional e acadêmico (durante uma especialização), com queixas de procrastinação crônica, perda de prazos, esquecimentos frequentes, dificuldades de foco e sensação de “mente acelerada”. Relata também histórico de baixa autoestima, ansiedade e desorganização em sua rotina diária. O objetivo da avaliação foi esclarecer o diagnóstico e orientar conduta terapêutica, incluindo possível início de medicação.

Instrumentos e procedimentos utilizados

  1. Entrevista clínica semiestruturada (anamnese e história de vida escolar/profissional)
  2. Testes cognitivos: WAIS-IV (versão completa), CPT-3 (Teste de Performance Contínua), Teste Stroop, Torre de Londres
  3. Questionários e escalas: ASRS-18, Barkley Adult ADHD Rating Scale, Escala de Autorrelato de Funcionamento Executivo (BRIEF-A), Inventário Beck de Ansiedade e Depressão
  4. Observação clínica em contexto de aplicação

Resultados da avaliação

  1. Atenção: No CPT-3, apresentou elevado número de omissões e variabilidade de resposta, sugerindo dificuldade na manutenção da atenção sustentada.
  2. Funções executivas: Desempenho abaixo do esperado em testes de planejamento, flexibilidade cognitiva e inibição (Stroop e Torre de Londres). Dificuldade em organizar estratégias para resolver problemas, tendência à impulsividade nas respostas e baixa tolerância à frustração.
  3. Memória de trabalho: Déficit leve identificado, especialmente na manutenção e manipulação de informações verbais sob demanda.
  4. QI total: 102 (média), com discrepância entre o Índice de Compreensão Verbal (superior) e os índices de Memória Operacional e Velocidade de Processamento (abaixo da média).
  5. Aspectos emocionais: Níveis moderados de ansiedade e sintomas depressivos leves. Relatos de autocrítica intensa, sentimento de incompetência e dificuldade em lidar com críticas.
  6. Histórico de vida escolar: Apesar de bom desempenho acadêmico, sempre relatou “estudar em cima da hora”, evitar tarefas longas e esquecer materiais escolares. Mencionou cansaço mental constante e dificuldade para manter rotina organizada.

Discussão

A avaliação evidenciou um perfil cognitivo compatível com TDAH do tipo predominantemente desatento, em nível leve a moderado. A presença de queixas desde a infância, com continuidade na idade adulta, associada ao padrão de funcionamento neuropsicológico, reforça o diagnóstico. Não foram identificadas alterações cognitivas compatíveis com quadros neurodegenerativos ou quadros afetivos primários.

A ansiedade relatada parece ter natureza secundária às dificuldades organizacionais e ao estresse associado à sensação de “não dar conta”, frequentemente descrita por adultos com TDAH não diagnosticado. O diagnóstico diferencial com Transtorno de Ansiedade Generalizada foi considerado, mas o padrão de funcionamento atencional e executivo favoreceu a hipótese de TDAH com sintomas internalizantes.

Conclusão e recomendações

A avaliação neuropsicológica forneceu elementos fundamentais para confirmar o diagnóstico de TDAH em adulto, subsidiando o psiquiatra na decisão pelo início de tratamento farmacológico com estimulantes, de forma criteriosa.

Encaminhamentos:

  1. Retorno ao psiquiatra com laudo neuropsicológico para avaliação farmacológica.
  2. Psicoterapia com foco em reestruturação cognitiva, estratégias de autorregulação emocional e habilidades de organização.
  3. Treinamento em habilidades executivas (uso de agenda, divisão de tarefas, gerenciamento de tempo).
  4. Apoio psicopedagógico breve para organização da rotina acadêmica da especialização.

Comentário final

Este caso ilustra como o TDAH pode permanecer não diagnosticado até a vida adulta, especialmente em indivíduos com inteligência preservada e recursos compensatórios. A avaliação neuropsicológica foi crucial para validar a experiência subjetiva da paciente, fornecer evidências objetivas do comprometimento atencional e executivo, e orientar uma intervenção mais precisa e empática.

Referências

  1. American Psychiatric Association. (2022). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR). Artmed.
  2. Barkley, R. A. (2015). Attention-Deficit Hyperactivity Disorder: A Handbook for Diagnosis and Treatment (4th ed.). Guilford Press.
  3. Pliszka, S. R. (2007). Comorbidity of Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder with Psychiatric Disorder: An Overview. Journal of Clinical Psychiatry, 68(Suppl 4), 8–11.
  4. Malloy-Diniz, L. F., Romano-Silva, M. A., Fuentes, D., & Correa, H. (2021). Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade: da neurobiologia à intervenção. Artmed.

Ricardo Santana, Neuropsicólogo, CRP15 0180, (82)99988-3001, Maceió/AL

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Depressão e o corpo

O Vineland Adaptive Behavior Scales – Third Edition (Vineland-3): Estudos de Validade e Aplicações

Camisa de força

A relação entre altas habilidades e o Quociente de Inteligência (QI)

Transtornos Mentais: Uma Visão Geral Baseada no DSM-5 e CID-11

Um plano de orientações terapêuticas para adultos com TDAH

TDAH, superdotação e altas habilidades

O que são crianças atípicas?

Depressão e Ansiedade à Luz da CID-11

TDAH e disfunção proprioceptiva