Avaliação neuropsicológica em transtornos mentais: fundamentos, protocolos, benefícios da abordagem precoce e riscos da não integração ao cuidado


Avaliação neuropsicológica em transtornos mentais: fundamentos, protocolos, benefícios da abordagem precoce e riscos da não integração ao cuidado

Resumo — A avaliação neuropsicológica é um eixo estruturante do cuidado em saúde mental ao integrar dados clínicos, funcionais e psicométricos sobre atenção, memória, linguagem, funções executivas, velocidade de processamento e autorregulação. Em transtornos mentais, esses domínios se alteram por múltiplas vias (neurodesenvolvimento, neuroinflamação, curso de vida, efeitos de medicamentos e comorbidades), afetando desfechos terapêuticos, adesão, prognóstico funcional e qualidade de vida. Este artigo apresenta um panorama técnico sobre quando e como avaliar, quais instrumentos com evidências brasileiras utilizar e quais são os impactos — clínicos, éticos e de gestão — de não incorporar a avaliação neuropsicológica de forma precoce nos planos de cuidado. Discutimos ainda requisitos normativos no Brasil e oferecemos recomendações práticas orientadas por evidências.

Palavras-chave: avaliação neuropsicológica; funções executivas; memória; saúde mental; CID-11; DSM-5-TR; Brasil.

1. Por que avaliar? O papel da neuropsicologia na saúde mental

Em psiquiatria e psicologia clínica, há uma distância frequente entre sintomatologia autorreferida (p. ex., humor, ansiedade) e performance objetiva em tarefas cognitivas. Essa discrepância explica por que a avaliação neuropsicológica:

  1. refina diagnósticos diferenciais e hipóteses etiológicas;
  2. identifica perfis cognitivos que modulam resposta terapêutica (psicoterapia, psicofármacos, reabilitação);
  3. quantifica risco ocupacional, escolar e de funcionalidade;
  4. estabelece linha de base para monitoramento longitudinal e tomada de decisão compartilhada;
  5. subsidia adaptações de manejo (psicoeducação, estratégias compensatórias, tecnologia assistiva).

Quadros como TDAH, transtornos do espectro bipolares, depressão recorrente, esquizofrenia/psicoses, TEA, transtornos por uso de substâncias, transtornos de personalidade e síndromes neurocognitivas (maiores e leves) apresentam assinaturas cognitivas distintas que podem ocorrer mesmo fora de episódios agudos e influenciar diretamente os resultados de tratamento.

Do ponto de vista classificatório, a CID-11 (OMS) e o DSM-5-TR (APA) são as matrizes diagnósticas de referência, usadas no Brasil e internacionalmente, e ambos reconhecem domínios cognitivos como componentes relevantes para diagnóstico, especificadores e avaliação de gravidade ou curso, especialmente nos transtornos neurocognitivos e do neurodesenvolvimento. 

2. Marcos normativos no Brasil

A Resolução CFP nº 009/2018 estabelece diretrizes para a Avaliação Psicológica, incluindo requisitos de competência, padronização, validade dos instrumentos e registro técnico do processo. No Brasil, a utilização de testes psicológicos deve obedecer ao SATEPSI e às boas práticas delineadas pelo CFP e Conselhos Regionais. Para psicólogas(os), isso implica seleção criteriosa de instrumentos validados para a população brasileira, com normas adequadas de escolaridade, idade e contexto sociocultural. 

3. O que avaliar: domínios e indicadores

  1. Atenção e velocidade de processamento: atenção sustentada, seletiva, alternada e dividida; latências e erros.
  2. Funções executivas: inibição, flexibilidade, atualização (working memory), planejamento e tomada de decisão.
  3. Memórias: episódica (verbal/visual; aprendizado e retenção), semântica, procedimental e de trabalho.
  4. Linguagem: nomeação, fluência semântica/fonêmica, compreensão e pragmática.
  5. Habilidades visuoespaciais/praxias: construção, cópia e praxias ideomotoras.
  6. Aspectos afetivo-motivacionais e metacognição: anedonia, apatia, autoeficácia, consciência de déficit.
  7. Funcionalidade: instrumentos padronizados de AVD/AVP/ocupacionais e indicadores ecológicos (erro real).

4. Instrumentos com evidências no Brasil (seleção)

Rastreamento cognitivo

  1. Mini-Exame do Estado Mental (MEEM/MMSE) – adaptações e diretrizes brasileiras. Estudos nacionais mostram forte influência da escolaridade no desempenho e fornecem recomendações de aplicação e interpretação no Brasil — dado crucial para evitar falsos positivos/negativos em populações com baixa ou alta escolaridade.  
  2. MoCA (Montreal Cognitive Assessment) – MoCA-BR. Validação brasileira indica melhor sensibilidade que o MEEM para comprometimento cognitivo leve, com utilidade em condições como doença de Alzheimer, doença de Parkinson, diabetes, DRC, entre outras, e boa acurácia para discriminar CCL de controles. Versões brasileiras e estudos de predição clínica estão disponíveis.  

Baterias breves e domínios múltiplos

  1. NEUPSILIN (Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve). Desenvolvido no Brasil, cobre orientação, atenção, percepção, memória, aritmética, linguagem, praxias e funções executivas, com estudos de validade, relações com WCST e aplicações clínicas.  

Linguagem/Funções executivas (exemplos)

  1. Fluência Verbal (categoria “animais” e fonêmica). Ampla base normativa brasileira, incluindo idosos e faixas de escolaridade, com evidências sobre efeitos de idade/educação e utilidade na detecção de declínio.  

Nota prática: A interpretação sempre deve considerar idade, escolaridade, letramento, língua, cultura e comorbidades (depressão, ansiedade, dor crônica, uso de medicação), sob pena de vieses diagnósticos — um ponto reiterado nos estudos normativos brasileiros do MEEM e da Fluência Verbal. 

5. Perfis neuropsicológicos por grupos de transtornos (visão aplicada)

  1. Transtornos do Humor (depressão/bipolar): lentificação, viés atencional negativo, queda de velocidade de processamento, disfunções executivas (inibição, flexibilidade) e prejuízo de memória episódica por falhas de codificação/recuperação (estratégias). Déficits residuais são preditores de recaída e pior funcionamento interpessoal.
  2. Transtornos de Ansiedade: prejuízos situacionais de atenção seletiva e controle inibitório (ameaça), com flutuação dependente de sintomas fisiológicos; avaliação ajuda a separar traço/estado e a orientar TCC baseada em treino atencional/metacognitivo.
  3. Esquizofrenia e transtornos do espectro psicótico: perfil difuso com quedas marcantes em atenção sustentada, working memory e aprendizagem verbal/visual; funções executivas comprometidas predizem capacidade funcional, adesão e reintegração ocupacional.
  4. TDAH (infância à vida adulta): déficits em inibição, atualização, tempo de reação e variabilidade intra-sujeito; a avaliação orienta intervenções psicoeducativas, acadêmicas e farmacológicas, reduz uso iatrogênico de estimulantes em quadros não-TDAH e identifica comorbidades (TEA, transtornos de aprendizagem, ansiedade).
  5. TEA: perfis heterogêneos; podem coexistir forças em memória roteirizada/visuoespacial com dificuldades em flexibilidade, coerência central e pragmática; avaliação subsidia adaptações educacionais e intervenções baseadas em pontos fortes.
  6. Transtornos por Uso de Substâncias: oscilações em controle inibitório, tomada de decisão e memória de trabalho; perfis associados a recaída e engajamento em tratamento.
  7. Transtornos Neurocognitivos (leve/maior): a combinação de rastres (p. ex., MoCA) e testes de memória episódica, linguagem e funções executivas tem maior sensibilidade para CCL/DA do que o MEEM isolado, especialmente em escolaridade alta — ponto com sólida evidência brasileira.  

6. Por que precoce? Benefícios clínicos e sistêmicos da avaliação antecipada

  1. Prevenção de cascatas iatrogênicas: perfis cognitivos mal compreendidos levam a prescrições inefetivas (ou com efeitos adversos desnecessários), sobrecarga familiar e intervenções psicossociais mal calibradas.
  2. Janelas de neuroplasticidade: intervenções cognitivas e ocupacionais são mais efetivas quando iniciadas com alvos claros (p. ex., treino de memória estratégica vs. velocidade de processamento) e com compensações ambientais cedo no curso do transtorno.
  3. Prognóstico e planejamento: a presença de disfunções executivas residuais após remissão sintomática (p. ex., depressão) é marcador de risco funcional; detectar cedo permite contratos terapêuticos realistas.
  4. Documentação legal e pericial: em escolas, trabalho e perícias, laudos neuropsicológicos precoces evitam contendas e atrasos na implementação de adaptações razoáveis.
  5. Gestão do cuidado: dados quantitativos longitudinalizados orientam stepped care e priorização de recursos.

7. O que acontece quando a avaliação neuropsicológica é negligenciada?

  1. Atraso diagnóstico e diagnósticos equivocados (p. ex., rotular desmotivação/apatia como “resistência” terapêutica quando há lentificação cognitiva mensurável).
  2. Baixa adesão a psicoterapias por mismatch entre técnica e perfil (p. ex., protocolos verbais extensos para pacientes com working memory muito reduzida).
  3. Escolhas farmacológicas subótimas (doses/medicamentos que agravam processamento/atenção).
  4. Fracasso escolar/ocupacional evitável, com estigmatização e custos sociais.
  5. Perda de oportunidade de implementar medidas de proteção (rotinas externas, nudges ambientais, tecnologia assistiva).
  6. Vieses culturais/escolares não controlados gerando falsos positivos/negativos — risco bem documentado em estudos normativos brasileiros do MEEM e da Fluência Verbal.  

8. Protocolo prático (sugestão estruturada)

  1. Hipótese clínica e demanda funcional. Definir pergunta(s) do caso (diagnóstico diferencial? aptidão ocupacional? manejo escolar?).
  2. Anamnese ampliada (curso de vida, comorbidades clínicas/neurológicas, medicações, sono, dor, uso de substâncias).
  3. Seleção de instrumentos com normas brasileiras pertinentes à idade/escolaridade e evidências de validade para a hipótese (p. ex., MoCA-BR para CCL; NEUPSILIN para perfil multidomínios; Fluências verbal semântica/fonêmica; triagens afetivas padronizadas).  
  4. Avaliação ecológica e funcional (relatos de terceiros, AVD/AVP, escola/trabalho).
  5. Devolutiva psicoeducativa clara e plano de manejo em linguagem acessível, com alvos cognitivos e ajustes ambientais específicos.
  6. Monitoramento longitudinal (mesmos indicadores/chaves, intervalo de follow-up definido por risco e mudança clínica).
  7. Registro técnico conforme CFP/SATEPSI, com descrição do raciocínio clínico, limites e recomendações.  

9. Considerações metodológicas e de equidade

  1. Escolaridade e letramento modulam fortemente o desempenho em triagens — adaptar pontos de corte e complementar com tarefas menos dependentes de escolaridade reduz viés. Evidências brasileiras sustentam essa cautela (MEEM; fluência verbal).  
  2. Validade ecológica: combinar testes de papel-lápis com medidas de vida real (p. ex., gerenciamento de finanças/medicação) aumenta aplicabilidade clínica.
  3. Interculturalidade/linguagem: atenção a bilinguismo, variação dialetal e testes traduzidos sem validação local.
  4. Ética e consentimento: transparência sobre objetivos, limites, devolutiva e segurança de dados; adequação de comunicação à pessoa avaliada e familiares.

10. Recomendações finais para serviços e profissionais

  1. Triagem precoce padronizada em serviços de saúde mental (p. ex., MoCA-BR + fluências) com fluxos para avaliação aprofundada quando necessário.  
  2. Portfólios de instrumentos com normas brasileiras atualizadas (ex.: NEUPSILIN; protocolos de linguagem).  
  3. Integração multiprofissional (psicologia, psiquiatria, neurologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, educação).
  4. Laudos orientados a decisão, com indicadores de risco e recomendações objetivas (tarefas, acomodações, treino/metas).
  5. Formação continuada em psicometria, análise de erro, validade incremental e interpretação baseada em hipóteses.
  6. Adoção das diretrizes CFP 009/2018 e do SATEPSI como estrutura de governança e qualidade.  
  7. Alinhamento à CID-11/DSM-5-TR na comunicação diagnóstica e na documentação clínica.  

Conclusão

A avaliação neuropsicológica precoce em transtornos mentais não é acessório: ela muda decisões clínicas, previne cascatas iatrogênicas, orienta intervenções personalizadas e melhora desfechos funcionais. No Brasil, existe base normativa (CFP/SATEPSI) e evidências locais que sustentam o uso de instrumentos validados e normas específicas de idade/escolaridade. O risco de não integrar a neuropsicologia desde o início — sobretudo nos quadros com queixas de atenção, memória e funções executivas — é prolongar sofrimento, aumentar custos e reduzir a efetividade do cuidado.

Referências selecionadas (ênfase em publicações feitas no Brasil)

  1. Classificações e diretrizes
  2. Organização Mundial da Saúde. CID-11 – Portal e Guia de Referência (versão em português). 2024.  
  3. American Psychiatric Association. DSM-5-TR (2022) e atualizações técnicas (2022–2024).  
  4. Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP nº 009/2018 (Avaliação Psicológica; SATEPSI).  
  5. Rastreamento e normas brasileiras
  6. Brucki SMD, et al. Sugestões para o uso do Mini-Exame do Estado Mental no Brasil. Arquivos de Neuro-Psiquiatria. 2003;61(3-B):777-781.  
  7. Bertolucci PHF, et al. O Mini-Exame do Estado Mental em população geral: impacto da escolaridade. Arquivos de Neuro-Psiquiatria. 1994. (síntese em repositório/compilações).  
  8. Brucki SMD, Malheiros SMF, Okamoto IH, Bertolucci PHF. Dados normativos para o teste de fluência verbal – categoria animais. Arquivos de Neuro-Psiquiatria. 1997.  
  9. Brucki SMD, Rocha MSG. Category fluency test: effects of age, gender and education… Braz J Med Biol Res. 2004. (síntese em plataformas).  
  10. Nitrini R, et al. / estudos correlatos de fluência — dados normativos em idosos brasileiros. Psicologia: Reflexão e Crítica; ANP.  
  11. Memória, Nasreddine et al.; MoCA-BR – validações e poder preditivo para CCL/DA no Brasil. Rev. Bras. Geriatria e Gerontologia; J Bras Nefrol; PubMed.  
  12. Baterias e estudos brasileiros de validade
  13. Fonseca RP, Salles JF, Parente MAMP. NEUPSILIN – Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve: desenvolvimento, validade de conteúdo e aplicações clínicas. (artigos e capítulos; sínteses em bases abertas).  
  14. Malloy-Diniz LF, et al. (orgs.). Avaliação Neuropsicológica (Artmed) – (obra de referência brasileira; sem citação web direta nesta resposta).
  15. Associações entre domínios cognitivos e condições clínicas
  16. Estudos nacionais sobre fluência verbal e declínio cognitivo em idosos (sensibilidade e variáveis sociodemográficas). Dementia & Neuropsychologia / ANP / PRC.  
  17. Relações entre NEUPSILIN e medidas executivas (WCST). Psicologia: Reflexão e Crítica.  

Ricardo Santana, Neuropsicólogo, CR0180, (82)99988-3001, Maceió/AL

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