Teste de Rorschach e Psicanálise Identificação, Projeção e Simbolização Conteúdos Latentes e Manifestos Condensação e Defesa

Resumo

Este escrito explora o Teste de Rorschach a partir dos fundamentos da teoria psicanalítica, abordando os mecanismos psíquicos de identificação, projeção, simbolização, condensação, defesas e a distinção entre conteúdos latentes e manifestos. A investigação teórica é complementada por uma seção técnica detalhada de análise interpretativa e por um estudo de caso clínico que ilustra a aplicação da técnica projetiva em contexto psicodiagnóstico. O objetivo é evidenciar a riqueza do Rorschach como ferramenta de escuta clínica e construção de hipóteses compreensivas sobre a vida psíquica.

1. Fundamentos Teóricos e Psicanalíticos

1.1 A natureza projetiva do Rorschach

Como técnica projetiva, o Teste de Rorschach permite ao sujeito “ver” nas manchas aquilo que já está internalizado, ainda que de forma inconsciente. Projeção, neste contexto, não é sinônimo de erro ou distorção, mas um recurso psíquico fundamental para o acesso à subjetividade (Anzieu, 1989).

1.2 Simbolização e função representacional

O ato de responder ao Rorschach requer a capacidade de transformar uma percepção ambígua (a mancha) em um conteúdo representacional (resposta verbal). Esse processo revela o grau de simbolização do sujeito. Autores como Kaës (2005) e Green (2005) destacam que a simbolização depende de processos psíquicos primários e secundários, que estão ligados ao acesso ao inconsciente recalcado, ao pré-consciente e à capacidade de ligação entre representações e afetos.

1.3 Condensação e deslocamento como operações do inconsciente

Tais processos são centrais na formação dos sonhos e também nas respostas ao Rorschach. A condensação manifesta-se quando múltiplas imagens simbólicas surgem em uma única figura, enquanto o deslocamento pode ser observado quando a resposta parece proteger o sujeito de conteúdos emocionais ameaçadores, substituindo um conteúdo por outro menos perturbador (Freud, 1900/1974).

2. Técnica Interpretativa: Análise Psicanalítica no Rorschach

2.1 Metodologia de leitura compreensiva

A leitura psicanalítica do Rorschach parte da escuta flutuante das respostas e da análise qualitativa dos conteúdos. Não se trata apenas de avaliar aspectos formais (por exemplo, localização ou qualidade formal), mas de escutar o que o sujeito expressa e como expressa.

Villemor-Amaral (2012) propõe a análise em três eixos:

  1. Conteúdo: temas, símbolos, figuras humanas, corpos fragmentados, agressividade, religiosidade, animalidade, etc.
  2. Forma narrativa: riqueza associativa, uso de metáforas, neologismos, estrutura do discurso.
  3. Afetos e tonalidade emocional: intensidade, ambivalência, deslocamento afetivo.

2.2 Indicadores psicanalíticos na técnica

3. Estudo de Caso Clínico

3.1 Dados iniciais

Paciente: M. R., 24 anos, sexo feminino

Encaminhamento: Avaliação para fins psicodiagnósticos em contexto de sofrimento psíquico difuso com queixas de angústia crônica, dificuldades nos vínculos amorosos e episódios de automutilação.

Histórico: Relatos de negligência emocional na infância, relação ambivalente com a mãe e ausência do pai biológico. Diagnóstico anterior de Transtorno de Personalidade Borderline.

3.2 Procedimento

O Teste de Rorschach foi administrado conforme o Sistema Compreensivo de Exner, mas com foco interpretativo psicanalítico, conforme o modelo de Villemor-Amaral (2012) e Bohoslavsky (1981). O protocolo foi analisado em seus aspectos quantitativos e qualitativos, priorizando os conteúdos simbólicos e os mecanismos de defesa.

3.3 Análise interpretativa

Resposta 2 – Prancha II: “Duas pessoas olhando para mim, mas com asas… talvez me julgando.”

Interpretação:

  1. Presença de figuras humanas aladas sugere idealização e temor de figuras parentais.
  2. A vivência de estar sendo “julgada” aponta para projeção do superego e mecanismos de culpa.
  3. As asas podem representar ambivalência entre desejo de proteção e afastamento.

Resposta 5 – Prancha V: “Uma borboleta cortada ao meio. Tá estranha.”

Interpretação:

  1. Forte simbologia de fragmentação do self, possivelmente ligada à clivagem e sentimentos de desintegração psíquica.
  2. A borboleta, enquanto símbolo de transformação, quando apresentada como “cortada”, pode refletir conflitos com o processo de individuação e dor psíquica.

Resposta 9 – Prancha IX: “Pedaços de coisas… tem sangue aqui. Mas não sei direito.”

Interpretação:

  1. Apontamentos diretos a temas de mutilação, violência, corpos em pedaços.
  2. A incerteza final da frase evidencia recuo simbólico e possível dissociação.
  3. Regressão a formas simbólicas mais primitivas, com tonalidade persecutória.

3.4 Considerações clínicas

O protocolo revelou um predomínio de mecanismos de defesa primitivos (projeção, clivagem, regressão), dificuldade em simbolizar afetos e forte investimento em figuras parentais ambivalentes. O uso de imagens fragmentadas e violentas sugeriu sofrimento psíquico intenso, ligado a vivências de abandono e frágil integração do ego.

A articulação entre os conteúdos manifestos (“uma borboleta cortada”) e os latentes (sentimento de ser incapaz de se reconstruir) sustentou hipóteses diagnósticas compatíveis com estrutura borderline. O Rorschach, nesse caso, permitiu acessar conteúdos não verbalizáveis que não emergiram com clareza na entrevista clínica.

4. Conclusão

A leitura do Teste de Rorschach sob o prisma da Psicanálise não se restringe à classificação de respostas, mas visa à escuta das narrativas simbólicas e defensivas que estruturam o sujeito. Mecanismos como projeção, identificação, condensação e simbolização não são apenas índices psicopatológicos, mas formas de expressão e tentativa de organização da realidade psíquica.

Em contextos clínicos complexos, como os casos limítrofes, o Rorschach é uma ferramenta que enriquece o processo diagnóstico e possibilita um encontro clínico mais profundo, sensível e simbólico.

Referências

  1. Anzieu, D. (1989). O Eu-Pele. São Paulo: Casa do Psicólogo.
  2. Bohoslavsky, R. (1981). O Rorschach na Psicologia Clínica. São Paulo: EPU.
  3. Freud, S. (1974). A Interpretação dos Sonhos. Obras completas, v. 4 e 5. Rio de Janeiro: Imago.
  4. Freud, A. (1996). O Ego e os Mecanismos de Defesa. Rio de Janeiro: Imago.
  5. Green, A. (2005). O trabalho da pulsão e o processo de simbolização. São Paulo: Escuta.
  6. Kaës, R. (2005). O Trabalho da Metapsicologia Clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo.
  7. Kernberg, O. (2009). Transtornos Severos da Personalidade. Porto Alegre: Artmed.
  8. Villemor-Amaral, A. E. (2012). Fundamentos do Teste de Rorschach: uma abordagem compreensiva. Petrópolis: Vozes.

Ricardo Santana, Neuropsicólogo, CRP15 0180, (82)99988-3001

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