DEPRESSÃO: DOR E CICATRIZAÇÃO

A depressão é um dos transtornos mentais mais estudados e discutidos na atualidade, não apenas por sua alta prevalência, mas também pelo impacto que exerce sobre diferentes dimensões da vida humana. Ela não se limita às alterações emocionais, alcançando repercussões cognitivas, fisiológicas e sociais que comprometem tanto o bem-estar quanto a saúde física dos indivíduos. Um dos aspectos mais relevantes dessa condição é sua estreita relação com a experiência da dor e com a capacidade do organismo de se recuperar de lesões, incluindo o processo de cicatrização. Compreender essa interação é fundamental para a prática clínica, pois permite intervenções mais eficazes e integradas, direcionadas à melhora global do paciente.

A depressão, atualmente, pode ser descrita por diferentes manifestações:

Alteração do humor, com predomínio de tristeza, sensação de solidão e apatia;

Autoimagem negativa, frequentemente acompanhada de autorrecriminações e sentimentos de culpa;

Desejos regressivos e punitivos, expressos pela vontade de fugir, isolar-se ou até mesmo morrer;

Mudanças nas funções vegetativas, como anorexia ou bulimia, distúrbios do sono e redução da libido; e

Alterações no ritmo de atividade, que podem variar entre lentificação psicomotora e agitação.

A dor, seja localizada ou difusa, frequentemente intensa, aparece como queixa central em muitos indivíduos deprimidos. Nos casos em que essa dor estava diretamente associada ao quadro depressivo, sua remissão ocorreu com o tratamento da depressão.

A experiência dolorosa é subjetiva e solitária, só podendo ser comunicada por quem a sente. Sua avaliação é sempre indireta, já que não há exame capaz de demonstrá-la de forma objetiva.

Um dos principais motivos de insucesso no manejo da dor crônica está ligado à ausência de diagnóstico adequado de depressão. Nesse contexto, tanto a Escala de Depressão do Center for Epidemiological Studies quanto o Inventário de Depressão de Beck mostraram eficácia semelhante na diferenciação entre pacientes com dor crônica com ou sem depressão maior.

A relação próxima entre dor crônica e depressão suscitou um debate que permanece: qual condição surge primeiro? Segundo especialistas do Massachusetts General Hospital (MGH), a depressão geralmente precede as síndromes dolorosas crônicas. Entretanto, não existe consenso, pois outros autores defendem que, na maioria das vezes, os sintomas depressivos resultam da vivência prolongada da dor.

A associação entre depressão e condições clínicas está presente em praticamente todas as áreas médicas, sejam elas clínicas ou cirúrgicas. Isso exige cuidado diante dos preconceitos que ainda cercam as manifestações psíquicas relacionadas a doenças físicas, muitas vezes equivocadamente interpretadas como sinais de “fraqueza”. Na realidade, tratam-se de quadros sérios que necessitam de reconhecimento precoce e intervenção adequada.

Os transtornos depressivos são enfermidades crônicas, cujo principal sintoma é a alteração marcante do humor. Por isso, também são chamados de transtornos do humor. Essa alteração vem acompanhada de elementos somáticos e cognitivos, agravando o estado clínico e provocando sofrimento e perdas funcionais significativas.

O transtorno depressivo maior é o mais conhecido dentro desse grupo, que também engloba o transtorno depressivo persistente (distimia) e, de acordo com o DSM-5-TR, o transtorno disruptivo da desregulação do humor e o transtorno disfórico pré-menstrual.

Nas condições depressivas, o humor alterado costuma se expressar por tristeza ou irritabilidade. Estudos epidemiológicos apontam prevalência mundial de 4,7% (variação entre 4,4 e 5,0%).

Esses transtornos estão relacionados a altas taxas de comorbidades médicas e psiquiátricas, além de maior risco de ideação e comportamento suicida. Dada sua frequência e complexidade, eles acarretam prejuízos funcionais significativos, afetando múltiplos aspectos da vida cotidiana.

Mesmo nos períodos de estabilidade emocional (eutimia), os impactos podem ser observados, já que déficits em atenção, memória e funções executivas persistem, comprometendo autonomia, desempenho ocupacional e relações sociais.

Além disso, pessoas com transtornos depressivos costumam apresentar menor resposta à psicoterapia, maior risco de recorrência e queda acentuada da qualidade de vida.

Do ponto de vista fisiológico, a depressão está ligada à hiperatividade do eixo Hipotálamo-Hipófise-Adrenal (HPA), a alterações autonômicas (como redução da variabilidade da frequência cardíaca) e à manutenção de um estado pró-inflamatório e pró-coagulante. Esses mecanismos ajudam a explicar sua ligação com doenças cardiovasculares.

O estresse tem papel central na fisiopatologia da depressão. Em situações estressoras, há ativação do eixo HPA e do sistema nervoso simpático, aumentando os níveis de glicocorticoides e catecolaminas. Embora essa resposta seja útil em contextos agudos, sua manutenção prolongada gera neuroinflamação, alterações sinápticas e perda de plasticidade neuronal, ampliando o risco de transtornos mentais.

Esse processo prolongado favorece maior circulação de monócitos e granulócitos, além do recrutamento de células inflamatórias para o sistema nervoso central, promovendo inflamação cerebral e sintomas depressivos.

Tais mecanismos ajudam a compreender a associação entre depressão e doenças crônicas inflamatórias, como câncer, diabetes, Alzheimer e enfermidades cardiovasculares. Pesquisas também identificaram redução de glia em regiões corticais (pré-frontal e cíngulo), alterações em citocinas e proteínas inflamatórias, bem como ativação microglial em pessoas deprimidas, reforçando o papel da inflamação nesse transtorno.

Sob o ponto de vista neuroquímico, a depressão envolve a ativação da enzima indolamina-2,3-dioxigenase (IDO), que converte triptofano em quinurenina e ácido quinolínico. Esse mecanismo reduz os níveis de serotonina e aumenta a excitotoxicidade por meio dos receptores NMDA, intensificando os sintomas depressivos.

Dessa forma, a depressão não se limita a um transtorno emocional, mas apresenta implicações fisiológicas que afetam diretamente processos vitais, como a cicatrização.

O reparo tecidual é composto por três fases principais: inflamatória, proliferativa e de remodelamento. Todas elas podem ser prejudicadas pela depressão, tanto por fatores biológicos quanto comportamentais:

Resposta inflamatória alterada: o estado pró-inflamatório persistente prolonga a fase inicial, atrasando a cicatrização;

Ação hormonal: o excesso de cortisol, típico da hiperatividade do eixo HPA, compromete macrófagos e linfócitos T, essenciais na defesa contra infecções e no reparo dos tecidos;

Alterações circulatórias: o estresse crônico induz vasoconstrição, reduzindo oxigênio e nutrientes nas áreas lesionadas, atrasando o fechamento da ferida; e

Fatores comportamentais: indivíduos deprimidos tendem a negligenciar alimentação, higiene e adesão ao tratamento. A carência de nutrientes como vitamina C, zinco e proteínas agrava o comprometimento da reparação tecidual.

Estudos realizados no Brasil confirmam essa relação.  A depressão exerce efeito negativo sobre a recuperação clínica em diferentes enfermidades, incluindo atraso na cicatrização, o que reforça a necessidade de diagnóstico precoce e intervenções integradas.

A depressão deve ser compreendida como uma condição multifacetada, que vai além das alterações emocionais e repercute em processos biológicos fundamentais, como a cicatrização de feridas. Essa visão integrada permite compreender melhor os desafios enfrentados pelos pacientes e reforça a importância de estratégias terapêuticas que combinem cuidados médicos, psicológicos e sociais. Investir no tratamento precoce e adequado da depressão não apenas alivia o sofrimento psíquico, mas também contribui para a melhora do estado físico, da recuperação clínica e da qualidade de vida como um todo.

Bibliografia

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Renério Fráguas Júnior et al. Depressões em Medicina Interna e em Outras Condições Médicas – Depressões Secundárias. São Paulo: Atheneu, 2001.

Ricardo Santana, Neuropsicólogo, CRP15 0180, (82)99988-3001, Maceió/AL

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